Esporte

Futebol Uruguaio – Parte II: Entre a Sala de Aula e o Manicômio

Capítulo 3: A Turma do Maestro Tabárez

Seleção uruguaia de 2011, vencedora da Copa América
Seleção uruguaia de 2011, vencedora da Copa América

Óscar Tabárez, um ex-jogador de carreira discreta, dividia sua vida entre os campos de futebol e as salas de aula, onde lecionava a disciplina de espanhol em escolas públicas. Se tornou treinador em 1980, um ano após sua aposentadoria. No comando do modesto Bella Vista, o trabalho com jovens e sua postura crítica ao que se praticava no futebol uruguaio fez com que a federação uruguaia o chamasse para as categorias de base da seleção, onde ficou apenas por um ano.

Em 1987, assumiu o Peñarol, onde conquistou o primeiro grande título da carreira, a Libertadores da América, o alçando para a seleção principal. Durante dois anos, em meio a muitas críticas por sua postura contra o futebol violento, Tabárez levou o Uruguai para a copa de 1990, sendo eliminado nas oitavas de final. Era a geração de Enzo Francescoli. Após a copa, recebeu oportunidades fora do país – inclusive na Europa. Na Argentina, comandou o Boca Juniors durante duas temporadas. Na Itália, duas passagens pelo Cagliari e uma temporada no gigante Milan. Após sua passagem pelo velho continente, acumulou trabalhos curtos no Peñarol e Boca até fazer uma pequena pausa na carreira em 2002.

Após não conseguir classificação para a copa do mundo de 2006, a Federação Uruguaia resolveu se dar por vencida e aceitar que os rumos do futebol nacional estavam errados. Um velho crítico foi chamado à ação: foi aí que Óscar Tabárez voltou ao comando da celeste olímpica, em 2006, e iniciou um processo de renovação, formação de uma nova geração e recuperação dos valores que fizeram o futebol uruguaio chegar aonde chegou. Foi dessa maneira que uma nova grande geração foi formada. Com uma equipe muito consistente, apresentando um futebol direto e extremante aplicado taticamente, a seleção uruguaia voltou a se classificar para uma Copa do Mundo e terminou fazendo uma histórica campanha que levaria a celeste olímpica novamente as semifinais do mundial, mas acabou derrotada num jogo duríssimo contra a Holanda. No ano seguinte, entretanto, venceria a Copa América depois de 16 anos. Esta é a geração de Fernando Muslera, Diego Lugano, Diego Godín, Diego Forlán, Luís Suarez e Edinson Cavani.

O fantástico trabalho rendeu ao “Maestro” a possibilidade de reconstruir a base do futebol uruguaio, recuperando a força dos clubes de bairro, que por sua vez fortaleciam os clubes da capital, fazendo com que novos nomes surgissem. E mesmo com a descoberta da síndrome de Guillain-Barré, que passou a deteriorar muito sua condição física e locomotora, Tabárez levou o Uruguai para mais 2 Copas do Mundo (2014 e 2018), sempre passando para a fase de mata-mata.

Em 2021, depois de 15 anos a serviço da celeste, “El Maestro” deixou o comando em meio a uma enorme dificuldade nas eliminatórias para a copa de 2022. Diego Alonso entrou em seu lugar, garantiu a vaga, mas deixou a seleção após não passar da fase de grupos no mundial.

Capítulo 4: O Manicômio do Loco Bielsa

Seleção uruguaia sub-20 de 2023, vencedora da Copa do Mundo Sub-20
Seleção uruguaia sub-20 de 2023, vencedora da Copa do Mundo Sub-20

A decepcionante campanha na Copa do Mundo colocou em xeque as tradições do futebol uruguaio. Os remanescentes da geração semifinalista em 2010 indicam que não deverão estar em mais um ciclo. A filosofia de jogo e de vida que marcam a celeste olímpica, mesmo com sua moralidade junto à sociedade recuperada por Tabárez, era mesmo a forma que levaria o Uruguai à uma nova conquista mundial? Os treinadores uruguaios, até mesmo os mais jovens, são alinhados às velhas tradições. Era a vez de um estrangeiro? Fato é que enquanto a federação tinha questões para resolver, a seleção sub-20 disputava o campeonato sul-americano da categoria em janeiro desse ano, comandada por Marcelo Broli. O Uruguai fez uma grande campanha, terminando o campeonato em segundo lugar, atrás somente do Brasil, e conseguindo a classificação para a Copa do Mundo da categoria. Em abril, a direção da federação uruguaia parecia ter tomado uma decisão sobre o seu futuro ao abrir negociações com o argentino Marcelo Bielsa, provocando uma enorme discussão na sociedade uruguaia.

Marcelo Bielsa começou sua trajetória no futebol como jogador do Newell´s Old Boys, mas decidiu encerrar sua carreira depois de cinco anos de trabalho para se dedicar aos estudos com o fim de se tornar treinador. Começou sua atuação com treinador nas categorias de base do Newell´s. Depois de 10 anos, recebeu a oportunidade de dirigir a equipe principal, transformando o seu elenco ao subir diversos jogadores jovens. O resultado foi o histórico bicampeonato argentino dos “leprosos”.

Saindo da sua casa, o argentino teve passagens por México e Espanha até voltar ao futebol argentino, no comando do Velez, onde ganharia não só mais um campeonato como a chance de assumir a seleção argentina. A maneira arrebatadora com que a Argentina passou pelo ciclo para a copa de 2002 fez com que ela ganhasse o status de superfavorita. A seleção contava com nomes como Sorín, Zanetti, Verón, Simeone, Aimar, Riquelme, Ortega, Crespo e Batistuta. Mas o que parecia ser uma grande chance de conquistar o tricampeonato do mundo se tornou num grande fiasco após a eliminação na primeira fase. O mundo caiu sobre Bielsa, que foi amplamente criticado por suas convicções. Mesmo assim, ele se manteve no cargo até 2004, quando venceu os jogos olímpicos e deixou a seleção para ficar um período sabático.

Em 2007, o argentino assumiria a seleção chilena visando a classificação para a copa de 2010. Bielsa transformou as instalações da federação chilena e deu oportunidades a vários jovens jogadores. Sua proximidade com a população chilena fez com que ele virasse um ídolo nacional. Com os objetivos conquistados, deixou a seleção nas mãos de Jorge Sampaoli, que colheu os seus frutos levando a seleção “roja” aos seus primeiros títulos na história.

Marcelo rumou para o velho continente para comandar o Athletic Bilbao, da Espanha, onde fez o clube basco chegar aos vice-campeonatos da Copa do Rei e da Europa League, mais uma vez fazendo um trabalho com jovens. O mesmo se repetiria no Olympique, de Marselha, onde novamente chegaria a um vice-campeonato.

O próximo grande trabalho de Marcelo seria no Leeds United, tradicional clube inglês afundado na segunda divisão há muitos anos. O título da segunda divisão, retorno e manutenção na Premier League, fizeram com que outra vez o argentino ganhasse a idolatria local. Toda essa adoração que Bielsa consegue junto aos torcedores dos lugares onde ele trabalha se dá muito pela sua forma de ser e estar no mundo. O apelido de “Loco” (Louco) está intrinsecamente ligado à sua obsessão pelo trabalho, por melhorar os atletas, por não abandonar suas ideias, por confrontar jornalistas, por abdicar de casarões para morar em locais modestos próximos do centro de treinamentos onde ele possa ir a pé, estando sempre perto dos torcedores.

Sua forma de jogar extremamente ofensiva fez Marcelo se tornar um dos treinadores mais influentes do século XXI, “criando” uma filosofia própria seguida por diversos treinadores – muitos deles seus ex-atletas e ex-auxiliares. Porém, ao mesmo tempo que é respeitado, o argentino é alvo de críticas e até mesmo desprezo de muitos, por ter uma longa carreira com apenas 4 títulos, por acumular vice-campeonatos, por fazer uma das mais talentosas gerações argentinas cair na primeira fase da Copa do Mundo. Para aceitar Marcelo Bielsa é necessário abraçar sua loucura e a federação uruguaia estava disposta a isso. Em maio, o argentino foi anunciado no comando da celeste olímpica. Em maio também ocorreria o mundial sub-20, e a seleção uruguaia era uma das candidatas ao título. A seleção de Broli tinha uma equipe muito consistente e disciplinada, como manda a tradição charrua. E foi dessa maneira que os uruguaios foram avançando na competição até chegar à final contra a Itália. A vitória por 1 a 0, com gol de Luciano Rodriguez ao final dos 90 minutos, levou a seleção uruguaia ao seu primeiro título mundial sub-20. Broli entrega ao seu xará Bielsa uma geração vencedora para trabalhar em conjunto com jogadores como Valverde, Ronald Araujo, Rodrigo Bentancur, Darwin Nuñez. Será que a celeste olímpica voltará aos seus tempos de glória? Quem viver verá.

Matheus Alves

Matheus Alves, 23 anos, estudante de Educação Física e auxiliar técnico de futsal na Casa de España.